A história do Sr Criolo – inspiração para Guimarães Rosa e para uma vida inteira

Numa conversa sobre a obra de Guimarães Rosa e suas inspirações vindas do nosso sertão, ouço a pergunta: “Você sabia que um dos vaqueiros que acompanharam Guimarães Rosa na expedição de 52 está vivo, lúcido e é morador de Sete Lagoas? Se você quiser, posso marcar um bate papo de vocês dois.” Um misto de surpresa e encantamento tomaram conta de mim naquela hora. Como assim, eu que me inspiro tanto em Guimarães Rosa poderia bater um papo com quem o inspirou? Claro que minha resposta foi positiva.

Desde esse dia, passei a pesquisar sobre esse moço.  Sr Criolo é Francisco Guimarães Moreira Filho, hoje com 86 anos, filho de Cenira Ferreira Moreira e Francisco Guimarães Moreira, primo de primeiro grau de João Guimarães Rosa. O que encontrei em minha pesquisa foi que Sr Criolo é o último vaqueiro vivo que participou da viagem de Guimarães Rosa pelo sertão de Minas Gerais em 1952, exatos 68 anos atrás. Esta viagem é histórica porque serviu de inspiração para parte da obra de Guimarães Rosa: o conjunto de sete novelas “Corpo de Baile” e para o romance e obra-prima “Grande Sertão: Veredas” –que seria inicialmente uma das histórias de “Corpo de Baile”. Ambos os livros foram lançados em 1956, quatro anos após a expedição. Em “Corpo de Baile” (1956), um personagem inspirado no capataz da Fazenda do pai do Sr Criolo, Manuelzão (Manuel Nardi, morto em 1997) está no título da novela “Manoelzão e Miguilim.”

Pronto, pensar que poderia ver de perto esse senhor já me encheu de alegria.

Chegou o dia e lá fui eu. Coração palpitando e boca seca, sentar de frente com a história mundial. Porque as obras de Guimarães Rosa, não afetaram só a nós, brasileiros, mineiros sertanejos. Elas ultrapassam o mundo no mais puro sentido “minas são muitas.”

Fui recebida por Jucelma, a segunda filha do Sr Criolo e Boneca – uma cachorrinha espirulética, pequenina e sua fiel companheira. Entrei e lá estava ele. Sentado numa espécie de templo. Uma varanda fresquinha, toda forrada de pedra ardósia que no correr da conversa ele me conta orgulhoso “Tudo isso foi retirado da pedreira que eu tinha. Esses esteios ali, só tem aqui em casa.” E com muito de sua história contata nas fotos expostas na parede. Ele me indica prá sentar à sua frente e já começa com uma pergunta franca, direta e desconcertante. “Então o que você quer saber?” Eu queria saber tudo… e foi aí que eu descobri que Guimarães Rosa, foi também um privilegiado por conviver e registrar Criolo e tantos outros naquela expedição. Ele é o sertão inteiro.

Começa me contando que é o caçula de sete irmãos. Alguns ainda estão por aqui, outros já “se encantaram”. Nasceu na roça, na Fazenda São Francisco, em Paraopeba. “ A vida lá era uma alegria só, principalmente quando juntava a meninada da casa, os filhos dos vaqueiros… “ umas trinta crianças que estudavam na escola que o pai, Seu Chico Moreira, mandou construir. Quando deu idade de estudar na cidade, o pai, que havia montado casa para os outros irmãos estudarem, o enviou prá lá de mala e cuia. Pela cidade ficou até formar a quarta série e de lá voltou para a Fazenda para ajudar o pai. A vida na fazenda sempre foi uma maravilha… Ele ia muito para a Fazenda da Sirga, nas proximidades de onde hoje é o município de Três Marias. Lá vivia Manuel Nardi, que era o vaqueiro do seu pai e tomava conta da Fazenda. Calado, contador de causo, barbudo… Manoelzão. Isso mesmo, aquele do Miguilim…

Dessa prosa, pulamos para o “E como é aquela história da viagem do Sr com Guimarães Rosa?” Uma gargalhada contagiante me diz que a história é longa, mas já que eu estava ali para ouvir, ele iria me contar com detalhes…

O pai, Chico Moreira, comprou um Jeep importado no início dos anos 50. Precisava ir ao Rio de Janeiro buscar esse Jeep, mas pouco ou nada entendia de alfândega. Escreveu uma carta para Guimarães avisando que ia lá e pedindo ajuda para retirar esse jeep. Assim foi. Chegando no Rio, Guimarães Rosa ajudou seu primo Chico a resolver a questão do jeep e numa conversa disse que, apesar de escrever sobre o sertão, ele não vivia aquilo. Queria viver. Ir até lá, andar com vaqueiros, montar no lombo do burro, ouvir os casos, comer a comida sertaneja. Chico de pronto disse a ele que no mês seguinte ia levar uma boiada da Fazenda da Sirga até a Fazenda São Francisco, se ele quisesse… E ele quis.

Assim, na data marcada, Chico Moreira e Criolo foram de Jeep buscar Guimarães Rosa na Estação de Trem de Araçai. Pousaram na Fazenda São Francisco e de lá, foram até a Sirga onde João e mais “sete ou nove, uma coisa assim, não me lembro bem!” peões partiram acompanhando 180 cabeças de gado por 280km.

 

Criolo, então com 17 anos, me conta que pouco conversava com Guimarães “a gente era menino bobo, da roça, tinha até vergonha!”. Mas escutava os casos, ria, contava alguns e, pensei comigo, serviu de inspiração para as histórias…

Guimarães Rosa vivia com uma caderneta pendurada no pescoço escrevendo e anotando tudo. Ia no lombo do burro, fazendo pouso nos lugares certos, comendo comida de tropeiro que era levada na cangalha e feita pelo Zito, cozinheiro de mão cheia responsável pela cozinha da comitiva. Logo de manhã, a comida era reforçada para aguentar o resto do dia pois aí só parava a noite para comer de novo. Era feijão, carne salgada, arroz, muito porco, ovo… a verdadeira comida do sertão.

Seriam 10 dias de viagem e Chico tinha certeza que Joãozito (era assim que chamavam Guimarães Rosa por lá!) não iria dar conta de fazer todo o percurso a cavalo. Decidiu então, ir busca-lo de Jeep em Andréquissé, distrito de Três Marias. Até lá, imaginava Chico, Joãozito já haveria de ter feito, visto, ouvido e comido tudo o que queria e estaria cansado. Enganou-se!

Guimarães afirmou que faria todo o percurso a cavalo, com os peões, levando a boiada, pousando como eles e assim fez. Dali, Criolo voltou com o pai para a Sirga e no décimo dia acordaram de madrugada e foram buscar a comitiva em Araçai.

Guimarães ficou mais uns dias para descansar, seguiu viagem, levou com ele as histórias dos peões, de Manoelzão, de Sr Criolo, do sertão, da cozinha e de toda uma vida. Nunca mais se viram.

Quando ele volta a me contar da família, fala com orgulho da esposa Beatriz, que era vizinha da Fazenda onde ele morava, me mostra a foto da casa onde se casaram – e que pertence à família até hoje – ainda com a mesma fachada. Ele e Beatriz tiveram seis filhos. Ela, dois filhos e um neto, como diria o próprio Guimarães,” já ficaram encantados” e quatro (Jussele, Jucelma, Jusmara e Júlio César), atualmente também moram em Sete Lagoas e se revezam junto com os nove  netos e uma bisneta, nos carinhos e cuidados com ele e sua Boneca.

Durante sua trajetória, Sr Criolo foi proprietário da pedreira de ardósia, foi caminhoneiro e quando percebeu que os carros e caminhões da região sempre precisavam de socorro, criou a Socorro Franbe. Uma empresa de guinchos e socorro automotivo que por muitos anos foi referência em toda a região. Não, eu não escrevi Franbe sem obedecer a língua portuguesa. Na verdade, o nome da empresa é a aglutinação dos nomes Francisco e Beatriz. Nome esse dado por sua sogra.

Em 2007, nos 100 anos de nascimento de Manoelzão, todo o trajeto feito em 1952 foi refeito. Nova comitiva sob comando agora do Criolo, com a participação dos seus netos Rafael e Tiago, foram a mesma quantidade de vaqueiros.

Trouxeram o mesmo número de cabeças de gado, pousaram nos mesmo lugares, demoraram o mesmo número de dias. Todas essas fotos estão também na parede atrás dele que me conta sobre cada uma delas, sobre cada pose, cada caso…

Poderia ter ficado ali um dia inteiro ou mais ouvindo as histórias do Sr Criolo, do sertão, da vida, dos amores, da infância, dos sucessos profissionais… mas já era mais de cinco da tarde e às cinco e meia é hora do lanche reforçado. Depois, mais tarde vem a TV na companhia da Boneca, o mingau preparado por um dos filhos e o sono tranquilo e merecido de quem aos 86 anos viveu e inspirou tantas vidas e histórias.

Terminamos nosso papo naquele dia e passei a conversar com a Jucelma, sua filha que tem uma comitiva feminina da Queima do Alho e que é mais uma linda história que dá continuidade a essa, mas que vamos contar depois, numa matéria exclusiva para ela.

Um suspiro! Um respiro, a certeza do privilégio em estar na companhia do Sr Criolo naquele dia e através de tanta lucidez, aprender a alegre constatação que a vida é isso: o passado, nossas histórias, nosso sertão, o amor, o afeto, nossa cozinha, nosso jeito de falar, de receber, de olhar, de contar um causo e levá-lo pelo mundo afora. É do barro da rica simplicidade que nós mineiros somos feitos e que lá no nosso íntimo, estaremos sempre, seja onde como  for, em expedições pelo Sertão, porque é como Joãozito disse: “O Sertão é dentro da gente!”

Por Narly Simões

  • Agradecimento à Mariela França que proporcionou esse encontro e a Jucelma que me recebeu tão bem.
  • As fotos são do acervo da família.
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